terça-feira, 1 de julho de 2014

Olho de boi é que engorda o dono


Sebastião Nunes
Nascido em Bocaiúva, Minas Gerais, Sebastião Nunes, escritor e poeta assina uma coluna dominical no Jornal O Tempo e nos brindou com esta crônica no último domingo.

Coisa de mineiro
 

                INTELECTUAL PENSA QUE SABE DAS COISAS PORQUE NUNCA OUVIU CONVERSA DE BICHO

               PUBLICADO EM 29/06/14 - Jornal O Tempo


Imponente casal de guzerás pastava tranquilamente. Grandes, gordos, chifrudos. Trepado na porteira, Jeca Tatu olhava para bem longe. Pequeno, magro, tristonho. Mordiscava um talo de capim e parecia preocupado. Mascando e babando, abanavam os rabos os bovinos, espantando moscas inexistentes. Nas costas de um deles, lustroso casal de anuns-pretos catava carrapato.

PAPO DE CARRAPATO

Irritado com o banquete dos anuns, disse o carrapato Pedrão à consorte, vagarosa como o maridão, que também chupava o sangue morno e gostoso do boi Genaro:

– Não aguento mais tanta perseguição, Joaninha. Vou entrar com habeas corpus! Principalmente porque anum não come carrapato, isso não passa de lenda.

– Faz muito bem, Pedrão – concordou Joaninha, arrotando. – Desse jeito, qualquer dia não se poderá mais almoçar em paz. Pra embasar sua petição, pode citar o Aurélio. Está lá bem claro: “Ao contrário do que se diz, anum-preto não se alimenta de carrapatos”. Mais claro, impossível.

PAPO DE ANUM-PRETO
Riu o anum-preto macho, Onofre, o papo cheio de carrapatos:

– Essa é muito boa! “Não se alimenta de carrapatos”. Essa é ótima. Pois o que estamos fazendo aqui, nas costas do Genaro?

Ripostou às gargalhadas Maricota, a anum-preto fêmea:

– Essa gente da cidade é tudo uma comédia só! Imagine: anum-preto não come carrapato! De onde tiraram essa ideia? Desde que o mundo é mundo, carrapato sempre foi nosso prato preferido! Só pode ser coisa de intelectual.

PAPO DE GUZERÁ

Mascando sossegado seu capim-angola para lá de suculento, Genaro, o chifrudo macho, virou-se para a chifruda fêmea:

– É um saco essa conversa fiada, Maria Chiquinha. Todo mundo sabe como apreciamos almoçar em silêncio. Simples questão de boa educação. Falar de boca cheia é deselegante e prejudicial à digestão. Por que não calam o bico?

– Porque são dois idiotas, Genaro, meu bem – xingou bem alto Maria Chiquinha, abanando com força o rabo. – Ah, quem me dera acertar um deles!

ENQUANTO ISSO...

Enquanto isso, trepado na cerca, Jeca Tatu olhava para longe. E tanto olhava, e tanto parecia preocupado, que os bichos também se preocuparam. Muito antes, sofrera Jeca de verminose, curou-o Monteiro Lobato. Sadio e trabalhador, endinheirou-se, comprou fazenda, casou com Rosinha, caipira lindinha, e teve um casal de filhos bonitos e inteligentes. Para que mais? Era feliz e não estava prosa.

PAPO DE CARRAPATO

– Não tô gostando nem um pouco da cara do Jeca. Será que tá de novo com o sangue aguado? Dizem que sangue ralo dá tristeza, podendo até matar.

– Já ouvi falar. Só não sei de onde tirou a tristeza. Tem uma fazenda enorme, centenas de cabeças de tudo quanto é gado, mulher bonita, empregados espertos...

– Não será porque felicidade é como sangue de boi, quando é demais enjoa?

– Cê tem razão, criatura! Acho que deve ser isso.

PAPO DE ANUM-PRETO

– Até que esses carrapatos não são burros, viu só o que estão dizendo?

– Viu, não, seu bobo: ouviu. Ver é com os olhos, ouvir, com os ouvidos. Ou nunca aprendeu sobre os sete sentidos?

– Que sete sentidos, Maricota? Até ontem eram só cinco...

– Sete, sim senhor. Visão, audição, olfato, tato, paladar, amor e saudade.

PAPO DE GUZERÁ

– Ouviu isso, Maria Chiquinha? Está dizendo a anum fêmea que amor e saudade são sentidos também. Será verdade? Nem sei o que significam amor e saudade.

– Eu também não, Genaro, meu bem. Os outros sentidos eu sei, principalmente paladar. Falar nisso, que delícia este capim angola, não é?

– Também acho. Só que nunca provei outro, então não dá pra comparar.

PAPO DE CARRAPATO

– Amor eu sei o que é: um fogo que arde sem se ver, ferida que dói e não se sente, um contentamento descontente, dor que desatina sem doer.

– Lindo! Você até parece poeta! Por que não escreve um soneto começando assim? Se escrever, dedica ele pra mim, dedica?

PAPO DE ANUM-PRETO
 
– Acho que matei a charada, mulher! Jeca tá é com saudade. Também, pra que foi casar com mulher bonita? Agora que ela foi tratar dos dentes na capital, ele não se aguenta e passa os dias desse jeito. Tristinho, tristinho.

PROBLEMA RESOLVIDO

– Claro que é isso, Maria Chiquinha! – e Genaro arregalou os olhos. – O que tá emagrecendo ele são os sentidos que não temos: amor e saudade. Que tal a gente arranjar um bom remédio? E se a gente cantasse pra levantar o astral dele?

E foi assim que bois, anuns e carrapatos passaram a cantar, nos intervalos das comilanças, lindas melodias para engordar de novo Jeca Tatu.

Não adiantou nada. Rosinha se apaixonou pelo dentista e nunca mais voltou.

 


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